Paulo Izael
Escrevo o que sinto, mas não vivo o que escrevo.
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FUNERAL


O velório era convencional. Três caixões perfilados, cobertos por coroas de flores. A nicotina deixava o ar intragável. O choro incontido de parentes e amigos eram comoventes. Era o adeus da vida. Precisamente no caixão central, estava Círius Campanilha. Ele sentiu as mãos cruzadas sobre o peito. Duas mechas de algodão fechavam as narinas. Seus olhos não mais fotografavam a vida, mas ele estava vendo as pessoas prestarem pêsames a seus parentes. Sabia que estava morto. Olhava a todos com fraternidade. De repente viu a face de seu executor lhe beijar o rosto e amparar sua esposa, a adorada Sandra.  
- Santo homem, há esta hora, certamente está no céu! – disse o criminoso.
Ao terminar a frase, Raferthes, o algoz, enlaçou a esposa de Campanilha num terno abraço protetor. Campanilha a tudo assistia, imóvel. Não entendia como poderia estar vendo a todos, se falecera. Certamente poderia tratar-se de alucinações pós-morte.
- Que Deus o tenha, meu amor! – gritou Sandra, sua esposa.
Foi com assombro que Círius Campanilha viu sua própria imagem ao lado do caixão, a demência estava completa, concluiu.
- Quem diria, morto! – disse seu clone.
Campanilha ouvira a frase, pode ler os lábios de seu clone, mas, na verdade era ele que se dirigia a si próprio.
- Estou delirando! -confessou Campanilha.
- Não. Eu estou falando com você.
- Se você sou eu, como pode falar comigo? – perguntou Campanilha.
- Sou o teu espírito, tua alma.
- Pelo que sei, quando a matéria fenece, a alma desencorpa!
O espírito coçou a testa, deu alguns passos e falou encafifado.
- Tem razão. Esta é a primeira experiência que passo. Ainda estou em você e não compreendo este estado de ser.
- O que vai fazer?
- Círius, está vendo aquele homem que está abraçando sua esposa e finge solidariedade?
- Estou, é o Raferthes.
- Ele acabou de assassiná-lo com um tiro que atravessou seu coração. Não acha que ele deve ir para as trevas?
Círius Campanilha não estava entendendo a razão daquele diálogo, mas, respondeu:
- Não devo desejar o mal.
A alma estava indignada.
- Não vê que ele o matou...Você está morto!
- Foi essa à vontade de Deus.
- Vai permitir que este assassino continue aprontando?
- Não tenho poderes para tirar a vida de um semelhante.
Novamente a alma estava raivosa. Catou os bolsos, retirou uma surrada caderneta, procurou o índice e leu alguma coisa. Em seguida disse a Campanilha.
- É, tenho que levá-lo comigo, trata-se de uma situação adversa. Vamos...!!!
Círius Campanilha foi sugado por uma luz azul e projetado em outro plano. Levantou-se, abriu os olhos e viu seu clone que o encarava.
- Agora novamente somos uma só parte, alma e matéria, fundidas!
Uma profusão de cores tornava o ambiente diferente de tudo o que Campanilha vira em vida. Milhões de anjos em sintonia com pássaros, flores e lagos.
- Onde estou? – perguntou Campanilha.
Viu um vulto se materializar. Era seu clone que voltava.
- Está num plano superior. – respondeu a alma. Vamos até aquele prédio, - disse, apontando com o dedo – resolver o seu destino.
- Não imaginava que tudo isto existia.
Chegaram até o local. Foram recepcionados por uma linda atendente que os guiou até uma enorme sala, que tinha um telão ligado.




- Círius Campanilha, nosso bom amigo – disse sorrindo um homem com faces risonhas.
Campanilha estendeu a mão, num terno cumprimento.
- Você foi chamado até aqui, por força de tua indiscutível fé. Sempre representou a imagem do criador. Na terra, foi generoso, amigo e benfeitor.
Círius Campanilha estava boquiaberto. Toda sua vida comentada, seus atos aplaudidos. Era recompensa mais que suficiente que um mortal sonharia em ter.
O anjo sorridente novamente encarou Campanilha e disse, apontando para o enorme telão.
- Está vendo seu velório? Olhe bem para a face do homem que lhe assassinou. Era seu sócio numa conceituada empresa. O que buscava ele? Sua parte nos negócios e a união com sua esposa, daí a prática do crime.
Círius Campanilha olhava atentamente para o telão. Sua expressão era terna, acrescida de transparente sentimento.
- Muito bem, - disse o anjo risonho - em momento alguma você reclamou da morte, seu coração sempre esteve voltado para o criador, em se procedendo a isto, você merece retornar a terra; deve prosseguir com sua missão de homem justo.
Voltar à vida! Círius Campanilha levou a mão ao coração, as faixas ainda estava manchadas pelo sangue. Radiante, foi possuído por uma alegria jamais provada.
- Agora vá! – disse anjo risonho – a matéria não pode ser enterrada!
Num décimo de segundo, Círius Campanilha estava novamente no velório. Procurou sua matéria que descansava, não achou. Apenas os dois caixões anteriores estavam ali. Correu para fora, conseguia atravessar as pessoas. Avistou o enorme cemitério, bem a frente, dezenas de pessoas rodeavam um caixão, enquanto o padre fazia homilia. Feito um foguete, Campanilha chegou no exato momento em que a terra estava cobrindo o caixão, entrou. Agora, na qualidade de humano, sentiu o ar rarefeito, seus pulmões estavam a ponto de implodir, bateu contra a tampa do caixão com violência, precisava ser ouvido! A terra continuava a cobrir o caixão. A agonia imperava, Campanilha continuava a bater no caixão, eram suas ultimas forças, agora estava sentindo a presença da morte, fechou os olhos!
A tampa do caixão finalmente foi retirada, o ar animou Campanilha, ele abriu os olhos e enxergou o mundo. O espanto foi generalizado, parentes, amigos, conhecidos, todos ficaram boquiabertos com o renascimento. Aproveitando toda a animação, Raferthes saiu em desabalada carreira, precisava fugir para não ser preso, correu a uma velocidade extraordinária. Círius Campanilha escalou  a cova, abraçou a todos, levou a mão ao coração, olhou, não havia qualquer marca que indicasse algum acidente ou perfuração.
Num súbito, uma nuvem negra eletrizada pairou sobre o cemitério, escondendo o sol. Relâmpagos faiscaram ameaçadoramente. Então feito um capricho da natureza, um raio, com potente descarga elétrica, atingiu Raferthes, partindo-o ao meio.
No momento seguinte o sol se fez presente em todo esplendor. Lá de cima, uma pomba branca voava, aterrizando lentamente. Findou por pousar sobre o ombro de Campanilha, cumprimentando-o, numa alegre flexão de asas.







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Paulo Izael
Enviado por Paulo Izael em 12/10/2005
Alterado em 21/10/2005
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